quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

NOTURNO


Sozinho
nas ruas desertas
do velho Recife
que atrás do arruado
moderno ficou...
criança de novo
eu sinto que sou:

— Que diabo tu vieste fazer aqui, Ascenso?

O rio soturno,
tremendo de frio,
com os dentes batendo
nas pedras do cais,
tomado de susto
sem poder falar..
o rio tem coisas
para me dontar:

— Corrre senão o Pai-do-Poço te pega, condenado!

Das casas fechadas
e mal-assombradas
com as caras tisnadas
que o incêndio queimou
pelas janelas esburacadas
eu sinto, tremendo,
que um olho de fogo
medonho me olho:

– Olha que o Papa-Figo te agarra, desgraçado!

Dos brutos guindastes
de vultos enormes
ainda maiores
nessa escuridão...
os braços de ferro,
pesados e longos,
parece quererem
suster-me no chão!

Ai! Eu tenho medo dos guindastes,
Por causa daquele bicão!

Sozinho, de noite,
nas ruas desertas
do velho Recife
que atrás do arruado
moderno ficou...
criança de novo
eu sinto que sou:

— Larga de ser vagabundo, Ascenso!



"ASCENSO FERREIRA"
(1895-1965)

Poeta, Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira nasceu no município de Palmares, zona da Mata de Pernambuco. Em 1925, participa do Movimento Modernista de Pernambuco e, em 1927, publica seu primeiro livro, "Catimbó". Em 1941, publica o seu segundo livro ("Cana Caiana"). O terceiro livro ("Xenhenhém") está pronto para ser editado, mas só sairia em 1951, incorporado à edição de "Poemas", que foi o primeiro livro surgido no Brasil apresentando disco de poesias recitadas pelo seu autor - a edição continha, ainda, o poema "O Trem de Alagoas", musicado por Villa Lobos.